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Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 12 - Dezembro 2009

Memória - Roniwalter Jatobá

Poeta Maior

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) foi a grande voz fraterna da poesia brasileira no século 20


"Nenhum outro poeta moderno provocou discussões tão apaixonadas, seja de admiradores que lhe interpretam de maneiras diferentes a poesia, seja dos conservadores que o escolheram como alvo de ataques. Discussões que não passam de sintomas da forte influência exercida pela originalidade e personalidade do poeta, hoje geralmente reconhecido como o maior do Brasil".

Assim o renomado crítico Otto Maria Carpeaux referiu-se a Carlos Drummond de Andrade. Nascido em ltabira, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902, Drummond fez os estudos secundários em Belo Horizonte, num colégio interno, onde permaneceu até que um período de doença levou-o de novo para Itabira. Voltou para outro internato, desta vez em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Pouco ficaria nessa escola: acusado de "insubordinação mental", foi expulso.

Em 1925, casa-se com Dolores Dutra de Morais e conclui o curso de Farmácia. Sem algum interesse pela profissão de farmacêutico, leciona português e geografia no Ginásio Sul¬-Americano de Itabira. Nessa época, já redator do Diário de Minas, mantém contato com os modernistas de São Paulo, sobretudo com o escritor e poeta Mário de Andrade.

O ano de 1928 foi positivo na vida de Drummond. Nasce a filha Maria Julieta e o poeta "escandaliza" os arraiais literários quando a Revista Antropofagia, de São Paulo, publica seu poema "No Meio do Caminho". Em 1930, o poeta lança sua primeira obra, Alguma Poesia, sob um selo imaginário chamado Edições Pindorama, numa edição de 500 exemplares. Com a revolução de outubro, liderada por Getúlio Vargas, o já funcionário público é chamado a exercer as funções de auxiliar-de-gabinete da Secretaria do Interior de Minas e, posteriormente, a de oficial-de¬-gabinete de seu amigo Gustavo Capanema, na mesma pasta.

Em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe-de¬gabinete de Gustavo Capanema, então ministro da Educação, até 1945. Nesse período, Drummond conseguiu conciliar o trabalho com Capanema em plena ditadura do Estado Novo (1937-1945) e, ao mesmo tempo, usar seus poemas para “destruir” o capitalismo e ser simpatizante do então clandestino Partido Comunista. Por sinal, em 1945, foi convidado por Luís Carlos Prestes para ser co-editor do diário comunista Tribuna Popular, mas fica ali por pouco meses, indo trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Aposentou-se em 1962. Encerra suas atividades burocrá¬ticas, mas prosseguem as literárias e as do intelectual-jornalista. A aposentadoria traz para o poeta e para o cronista a ocasião de se recolher à sala de trabalho de seu apartamento no Rio, de onde continua a observar e analisar o mundo. Desde 1954 colabora como cronista no jornal Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

Em mais de 60 anos de atividade intelectual, publicou mais de 50 livros, entre poesia, conto e crônica, e várias obras foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco e outras línguas. Por outro lado, traduziu fundamentais autores estrangeiros: Balzac (Os camponeses), Choderlos de Laclos (As relações perigosas), Marcel Proust (A fugitiva), García Lorca (Dona Rosita, a solteira), François Mauriac (Uma gota de veneno) e Molière (Artimanhas de Scapino).

Ao longo de sua vida, Drummond recebeu diversos prêmios por sua obra, destacando-se o Estácio de Sá (jornalismo), o Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, o Morgado Mateus (Portugal - poesia) e o Padre Ventura do Círculo Independente de Críticos Teatrais. Em 1987, a escola de samba Estação Primeira de Mangueira o homenageia com o samba-enredo "O reino das palavras" e é campeã do carnaval carioca.

Neste mesmo ano de 1987, a 5 de agosto, morre sua amiga, confidente e filha Maria Julieta. Desolado, Drummond pede a sua cardiologista que lhe receite um "infarto fulminante". Apenas doze dias depois, em 17 de agosto, Drummond morre numa clínica em Botafogo, no Rio de Janeiro, de mãos dadas com Lygia Fernandes, sua namorada com quem manteve um romance paralelo ao casamento e que durou 35 anos.

Sobre ser poeta, Drummond dizia: "Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo".

Uma das boas definições do poeta e de sua poesia me foi passada há algum tempo, via e-mail, por Ruy Espinheira Filho, também poeta e professor de literatura na Universidade Federal da Bahia: "Drummond foi quem melhor aproveitou as grandes lições do modernismo. Aluno de Mário de Andrade (principalmente) e Manuel Bandeira, levou ao máximo tais lições. Um dos pontos altos de Drummond (além de sua altíssima poesia) foi a grande lição de esperança que ele nos passou ¬sobretudo a partir dos poemas que refletiam a situação mundial, a grande ameaça do nazi-fascismo. Lição de esperança que nos ajudou muito, também, durante todos os anos de ditadura militar. Assim, Drummond foi a grande voz fraterna da poesia brasileira no século 20".

Drummond por Drummond

"Convidado pela Revista Acadêmica a escrever minha autobiografia, relutei a principio, por me parecer que esse trabalho seria antes de tudo manifestação de impudor. Refleti logo, porém, que, sendo inevitável a biografia, era preferível que eu próprio a fizesse, e não outro. Primeiro, pela autoridade natural que me advém de ter vivido a vida. Segundo, por que, praticando aparentemente um ato de vaidade, no fundo castigo meu orgulho, contando sem ênfase os pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem pelo mundo, e evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa, com que o redator da revista quisesse, sincero ou não gratificar-me.

Isto posto, declaro que nasci em Itabira, Minas Gerais, no ano de 1902, filho de pais burgueses, que me criaram no temor de Deus. Ao sair do grupo escolar, tomei parte da guerra européia (pesa-me dizê-lo) ao lado dos alemães. Quando o primeiro navio mercante brasileiro foi torpedeado, tive que retirar a minha posição. A esse tempo já conhecia os padres alemães do Verbo Divino (rápida passagem pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte). Dois anos em Friburgo, com os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velho que a maioria dos colegas, comportava-me como um anjo, tinha saudades da família, e todos os outros bons sentimentos, mas expulsaram-me por 'insubordinação mental'. O bom reitor que me fulminou com essa sentença condenatória morreu, alguns anos depois, num desastre de bonde na rua São Clemente. A saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda minha vida. Perdi a Fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz amigos inesquecíveis.

Casado, fui lecionar geografia no interior. Voltei a Belo Horizonte, como redator de jornais oficiais e oficiosos. Mário Casassanta levou-me para a burocracia, de que tenho tirado o meu sustento. De repente, a vida começou a impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação, que se desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros, mas apareciam novos. Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo. Já em Brejo das Almas (1934), alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais exacerbado, mas há também uma consciência crescente de sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do Mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta.

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista... Mas iríamos longe nesta conversa.

Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.