TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 12 - Dezembro 2009
Crônica - Plínio de Aguiar

Cactus, Erik Navarro,
mixed media, 1996 - fjldown.org.mx


Carta da Indagação a Bordo de um Desejo
(À amiga que se sentou ao meu lado)


Quando o Pesero ano 68, Ford, imenso, intransigentemente confortável deixou-me à rua Ezequiel Ordoñez, em Copilco el Alto, imaginei logo que estaria numa versão mexicana dos bairros da periferia de minha cidade natal, no Brasil. De imediato, senti que sob os sombreros, povoando na sombra dos rostos ao meio-dia, estava o buenos-días da terra onde iria viver alguns dos melhores anos de minha vida, se não os melhores.

Cheia das imagens dos bandoleiros, do Zapata versão Marlon Brando, Pancho Villa como guerreiro que visitava terras gringas, dando tiros a torto e a esmo, Pedro Armendáriz contracenando com Maria Félix no preto-e-branco das matinês, dos boleros que compassaram minha adolescência com as vozes de Pedro Vargas, Lucho Gatica, dramas que me fizeram chorar na surdina do macho jovem latino-americano, postado na cadeira de madeira do cinema poeira, para mim o México ainda estava pintado nessa gradação de aventuras a galope, dois pra lá dois pra cá, boleros, boleros, boleros, minha cabeça também abrigava pela ilustração recente o mistério das culturas ancestrais, Juan Comas, Trotski, e a inevitável lição da rapinagem norte-americana sobre as terras nortenhas da pátria de Orozco.

Como sabia pouco, como era ignorante, como não podia prever que receberia a certidão de cidadania latino-americana sob o pretexto de cursar o mestrado em antropologia na Universidad Iberoamericana!

A primeira lição desnorteadora, mas fascinante, foi o aprendizado da língua, do castelhano doce, matizado, dengoso, insinuante. A segunda, definitiva como a primeira, que se apresentou paralela e poderosa foi o contato com as mulheres, não só por essas, mas em razão do ambiente de ancestralidade misturada com a contemporaneidade advinda do contato direto, fronteiriço, com a sede do império capitalista.

Sempre imaginei, e repito, estampas mágicas formadas pela herança do vício cinematográfico quando adolescente, quase todas as tardes nas salas de projeção, o México contido numa letra de bolero, Gregório Barrios e uma hipócrita sentada a uma mesa de bar.

“Diez años, así se pasaron diez años sin yo ver tu rostro...” Dois para lá, dois para cá, o território mexicano como uma imensa pauta de Solamente una Vez, Perfídia, Agustín Lara, Fernando Fernández, e cavaleiros notáveis vestidos de branco com cartucheiras cruzadas nos peitos formidáveis, bigodes irredutíveis na sua dureza, viva la Revolución!

Daí para dançar nas festinhas do colégio, dos encontros estudantis, segurando trêmulo cinturas mexendo-se dois para lá dois para cá, lago azul, foi só um passo.

II

A dança que se estabelece hoje de símbolos, recordações, pirâmides, fondas, tequila, e tantos nomes e codinomes que seria impossível citá-los tem o compasso das manchas às vezes confusas do território de minha imaginação de um México libertário, muralista, um México de Carlos Fuentes, Tamayo, Diccionário Porrúa. Ándale. Paella en la Calle Bolívar. A tarefa quase impossível de distinguir minha imaginação da experiência vertiginosa dos labirintos pavimentados de la Calzada de los Muertos é um desafio que aceito prazerosamente, desde que minha certidão de subdesenvolvido latino-americano foi produzida numa terra que sempre aceitou os exilados da vida.

Díles que no me maten, não sei se esta frase de Juan Rulfo remete-me ao Brasil retorcido por ser tão espremido pelo capital internacional ou à terra seca de Luvina, lugarejo praticamente adubado pelas cusparadas daqueles que bebem a cerveja tíbia. Díles que no me maten, um dia no parque de Chapultepec assisti aquele escritor genial falando de literatura ao lado do brasileiro Eric Nepomuceno, mediando o encontro, no auditório da Casa do Lago, Universidad Autónoma de México.

Rulfo falava, fumava, falava, fumava e pregava cada palavra num cravo mental em todos que ouviam a sua fala, demonstrando erudição, inclusive peregrinando pela literatura brasileira, de Guimarães Rosa aos concretistas. Será que ele sabia que havia alguns brasileiros presentes? Por que falou do Brasil? Tudo contribuía para reforçar e não para anular minha imaginação de um México cabrón, macho, completo. Borracho.

Aliás, deve-se observar que é às vezes surpreendente a bagagem teórica complexa e profunda dos intelectuais que fazem da pátria mexicana um nicho de respeito.

A ambientação mágica de estar no bairro de San Ángel, entrando na livraria Gandhi, dava-me o mesmo cheiro naquele pequeno anfiteatro, frente a frente com o autor de Pedro Páramo, e na verdade eu gostaria de estar com Rulfo, em seu apartamento ou casa, tomando uma taça de vinho, pronto para morrer de saudade do que não fui, atolado na impossibilidade de escrever mais alguma coisa que prestasse. A mesma coisa: circulando entre os tabuleiros repletos de livros, ouvindo Rulfo, respirando a nuca da mexicana ao meu lado, uma das que me deram a oportunidade de um passaporte afetivo para entrar na Zona Rosa, e comer pozzole com cerveja negra Tecate, ouvindo a envolvente música nortenha.

Loucura. O risco de marchar pela Insurgientes e desabar no Paseo de la Reforma, vencido por tantos fantasmas a cavalo, retornando dos canaviais da terra de Zapata, trazendo triunfante um garrafão de aguardente, porque no distrito federal as bebidas hegemônicas eram a tequila, o mezcal e o pulque. Na expedição, fora acompanhado por Gilberto Leal Antunes, mestre do cavaquinho,doutor da Geologia e da Geografia, e de Raimundo Caruso, jornalista, poeta, versátil alquimista de lentilhas com bacon, em pleno terraço habitado por violões.

Como separar o pó das estradas de Yuriria da janela difusa da imaginação? Como escapar do reduto de tantas mariposas daquela cidade, quando recebi o convite para ir à casa com a colega judia e ruiva e ouvir a pergunta: Qué quieres? Repentinamente, dos pés à cabeça rodopiou a informação silenciosa: Estás en México, pendejo.

E os camponeses de Guanajuato, povoado de La Província, seguiram-se em fila a dizerem que eu era um mero aprendiz de antropologia num sepulcro de alguns milhares de anos, onde os deuses ensinaram o nixtamal e a sífilis dizimou dezenas de milhares de pessoas, enquanto os invasores afiavam as espadas nos troncos retorcidos de Tabasco.

A vertigem do convite à casa onde a mulher ruiva, linda, fogosa, persistia e eu não conseguia responder, enquanto a imagem da adolescente filha do camponês Alfonso, em pleno campo, onde os melões misturavam-se às preocupações de como cumprir o contrato de exploração da terra, vestidinho jogado sobre o corpo rijo, herdeiro da ancestralidade, contaminava meus impulsos mais puros da animalidade, do estupro. Recuei. A noite estava contida numa garrafa de tequila. Fui ao botequim mais próximo, mas não havia botequim. Sentei-me então na praça, num banco onde a igreja confundia-se com o almoxarifado dos meus remorsos fabricados no Brasil.

III

Pero lo que no sabemos nada es de la madre del gobierno. Outra frase de Rulfo. Portillo só caberia em minha imaginação se eu visse um Cárdenas elegante, bem falante. A diplomacia parecia ser a tônica de uma terra onde o Banamex me pagava a remessa de alguns dólares para que sobrevivesse, pudesse comprar tequila, comprar livros porque roubá-los unicamente era cansativo, saborear tacos e tortas em companhia de Silvia, de Isabel, de Alicia Gutiérrez, de tantos amores. E pagar a universidade, que só me dava uma bolsa que representava uma pequena porcentagem da mensalidade.

Entre os jornais El Dia e Unomásuno, este último muito parecido com as sessões de sétima arte do CUC, na Calle Odontología, eu preferia peregrinar pelas páginas onde podia ler desde Cabrera Infante até Milan Kundera, e a primeira leitura do notável La guerra del fín del mundo, do polêmico Vargas Llosa. Com a revista mantida por Octavio Paz e Carlos Fuentes, Vuelta, sob o braço, sentava-me na poltrona do cinema dominicano, em matinês memoráveis de sacanagem com as garotas que pululavam atrás do mistério.

IV

Para consolidar o imaginário num pavimento onde o real circulasse com a leveza dos fantasmas, pensei em consultar meus diários de campo, quando estive fazendo o mestrado. Abri os cadernos, folheei o tempo, revi os nomes, os lugares, as abordagens teóricas, as observações do coordenador de pesquisa de campo, mas senti-me na areia movediça das estradas de Guanajuato, infeliz daquele que recorre a anotações para fixar o delírio.

A maldição do testemunho escrito deverá ser maior que o mal que corrói a aparente paz de um velho encaixado numa espreguiçadeira, rodando feito pião na busca de explicação para tantos erros, tantas falhas, tantas vacilações, tantas trepadas que deixou de dar por ser tímido, burro, covarde.

Página por página fui revendo as vacas de Alfonso, em La Província, bem pertinho de El Sabino, Don Ángel e suas recordações da Revolução, González Arellano e sus cajones de miel, não, não deverei estar obrigado a lembrar as lágrimas ao sair da margem do rio Lerma. A mania de andar, o treino na observação, sentado perto da ladrillera de Jesus, comendo feijão. Não restou outra alternativa a não ser atirar os diários sobre a mesa, tudo isso ao som de trompetes de mariachis, como um perfeito cabrón derrotado pela tarefa quase impossível de imaginar o imaginário.

V

Ya lo verá usted. Em busca do fio condutor para orientar-me no labirinto das lembranças, que inevitavelmente contém o imaginário, vou-me agarrando às palavras ficcionais de Rulfo como um desesperado egresso do silêncio de Luvina. Ao sobrevoar a imensa cidade a bordo da aeronave da Varig, sobre o dorso intensamente iluminado de um animal fantástico, senti uma fisgada no cérebro ainda tonto da longa viagem desde o Rio de Janeiro.

Estava nascendo uma indagação, a necessidade de uma explicação. De quê? A concretização lenta dessa indagação teve início no táxi que peguei para o hotel, quando o motorista, ao saber que eu era brasileiro, perguntou-me por Pelé. Pelé? Ah, sim, Pelé, o gênio do futebol. A intimidade que a pergunta exigia que eu tivesse com Pelé levou-me à lembrança da Copa de futebol que o México houvera sediado, quando o Brasil consagrou-se campeão num desempenho fenomenal. Comecei a verificar que já havia nascido, no âmago de minha fragilidade latino-americana, aquela tal indagação.

A partir daí passei a observar, como se o treinamento em observação que vinha obtendo para ser um antropólogo razoável houvesse perdido o rumo, não mais ao meu redor, mas as minhas próprias reações ao comer um taco apimentado de flores de abóbora, percorrer as prateleiras infindáveis de obras de ficção nas infindáveis livrarias da capital mexicana, ao voltar aos boleros da minha adolescência, ao ouvir uma colega de mestrado perguntar-me o que eu achava de Carmen Miranda, ao correr no parque de Coyoacán, ao colocar a dissertação do curso de pós-graduação que fazia como bolsista em perigo definitivo, porque estava cada vez mais submerso nos labirintos da criação artística, que ia de Fuentes até os murais monumentais. O que essa indagação exigia para a sua construção?

Um dia, indo de metrô até Insurgientes, veio-me à cabeça a idéia de fazer um poema, mas a idéia não tinha qualquer origem olímpica. Inspirou-se na visão do homem encostado à mulher, órgão sexual acomodado entre as nádegas fartas, quase à porta do vagão, a gozar, rosto em espasmo. Lembro-me da expressão angustiada da mulher quase indígena, abafada por trás pelo agressor sexual, que contava com a conivente indiferença dos passageiros, comum nos transportes de massa mexicanos.

Depois do poema pronto, lembrei-me de um dos maiores saques de Nietzsche, ao dizer que o belo pode vir do feio, o limpo do sujo, o transitório do transcendental, dando um tiro de misericórdia nas origens eternas dos idealistas. E fiz:

Entre Chapultepec e Zaragoza
São raízes ou carris que guiam
na escuridão de minérios
o ranger de unhas? Entre década
e outra, estação e outra, uma curva
e desabalada reta rodas friccionam
o verme elétrico no capacete espanhol,
Cervantes eletrocutado.

São mesmo raízes ou minerais galvanizados?
Sem dúvida a morte é atmosférica e o ar vem
por canais sepultados:
pirâmides da Calzada de los Muertos.
Usinas das recordações assassinas.

A quatrocentos por hora, o metrô.
Dois velhos morrem de sífilis,
hijos de la chingada.
Entre as pernas da mulher sodomizada
Cortês desce na chegada.
VI

O parafuso impiedoso penetrando no meu quotidiano fazia o ruído do amontoamento, sem parar, de dúvidas. Era a construção da indagação. Cada esquina, cada ventania do inverno, cada pesero estufado de gente, mantinham uma interrogação.

O desconforto que começou a ser gerado nos meus passos pelo Cerro de las Torres em direção à universidade sinalizava outras viagens, uma mochila às costas, um mapa da república. Então decidi colaborar comigo mesmo na construção do que eu queria saber, mesmo sem saber em que consistiria isso que eu queria saber. Deixaria de rodopiar por dentro de mim, passaria a viajar por estradas verdadeiras, cortaria o país de norte a sul, de leste a oeste, do Atlântico ao Pacífico.Talvez fosse o modo mais seguro de escapar da tentação de querer decifrar o limite.

Limite de quê?

Mas a resposta a essa pergunta seria a própria maneira de substancializar a tal indagação que começara com um taxista, Pelé e a noite mexicana. Será que o que eu queria saber teria surgido no Rio de Janeiro, no consulado do México, ao ouvir a funcionária dizer: Pretendes ir ao México fazer o quê? Na segunda vez que viajei para sua pátria, ela decidiu convidar-me para sair à noite no Rio de Janeiro. Tomamos chope, trepamos e gritamos vivas a Chihuauha, pois o seu noivo canadense estava na Europa.

Depois de muitas viagens, de ter acampado em quase todos os rincões possíveis da república, numa manhã, enquanto quase dormia num ônibus em direção a Cuernavaca, repentinamente senti meus olhos abrirem-se, fixarem-se no teto do veículo, que tinha uma abertura para entrada de luz e ventilação, e que dava para ver nuvens passarem. Fiquei nessa posição alguns segundos, mas necessários para concluir que eu não estava no México. Estava no México?

O México existia?

Alguém ligou um rádio no fundo do ônibus.

Ouvi então os compassos firmes de Dos Almas, o que me remeteu, imitando a velocidade das imagens das nuvens passando engolidas pela abertura no teto do ônibus, ao galope de uma indagação inteirinha, reluzente e construída de amor, acalmando-me.

Com ela a resposta veio embutida.

O México de minha imaginação deixara de existir, soterrado ao peso de mim mesmo, o mais novo mexicano daquele momento.

Plínio de Aguiar viveu no México por quatro anos, quando fez cursos de pós-graduação em antropologia, educação e filosofia. É autor dos livros de poemas Lira rústica (2005) e Buraco na meia (2009), publicados pela Booklink Editora, Rio de Janeiro.